Hoje, descascando uma laranja, viajei no meu passado e lembrei-me das “tampinhas de laranja” oferecidas pelo meu pai numa pura demonstração de afeto.
Tinha também a fatia de melancia sem caroço. O bico da baguete. Ele descascava as laranjas e então perguntava: "tampinha de vovó ou de vovô?" A tampinha de vovó era o corte habitual, a de vovô era feita cuidadosamente com a ponta da faca enfiada em ângulo, de modo que ao final ficava uma espécie de cone. Aí ele dava umas fincadinhas com a faca nos gomos, para soltar mais caldo, e me entregava a laranja, ficando com a tampa.
Ele fazia questão de que eu tivesse sempre a melhor parte da laranja, mesmo que isso significasse ficar com os outros três pedaços não tão bons.
Meu pai não era de afagos nem de abraços gratuitos, mas ele sempre me dava a tampinha da laranja.
Um gesto de carinho recebido depois do jantar, que eu descobri tantos anos depois.
Entender o amor não é fácil, e demora. Às vezes uma vida.
Há coisas que só entendemos com a maturidade. No meu caso, há coisas que só entendi com a idade e, depois, com a morte do meu pai, olhando pra trás. Parece que sempre há mais uma camada a descascar sob a casca dos silêncios.
Mas silêncios e gestos podem nos dizer muitas coisas também. Uma pena que as vezes são tão difíceis de entender.
Há camadas e camadas. As pessoas nos dizem "Eu te amo" numa língua que só vamos aprender quando sua voz já tiver se calado - e não pudermos mais dizer "Eu também". Ou "Idem", que seja.
Meu pai fazia tampinhas em duas modalidades: reta e em cone. Sempre sem arrebentar a casca, sem ferir os gomos e sem deixar gosto amargo na polpa branca. Com um canivete de cabo de osso, que ele sempre carregava no bolso e nunca emprestava para ninguém - e que não sei que fim terá levado.
Também cortava a melancia, e tirava as sementes. Cozinhava o ovo e descascava apenas a ponta, deixando-o com cara de vulcão - a pequena cratera branca, com lava fluida, vermelho-alaranjado, onde se lançava uma pitada de sal e outra de pimenta do reino.
Assava castanhas no forno e, para desespero da minha mãe, permitia que as quebrássemos nas dobradiças das portas.
Ficava com as cascas e me dava o miolo do pão ("essa coisa de glúten e caloria ainda não tinha sido inventada").
Pensando bem, são muitas mais as modalidades de tampinha de laranja, e diferentes formas de amar. Cada um tem a sua.
Existem muitos carinhos além dos beijos e abraços.
Essa demostração de afeto que não vem com palavras, às vezes são as mais difíceis de entender, mas nos marcam para sempre.
Muitas vezes o amor se expressa assim, de forma prosaica, que se transforma em poesia.
Meu pai nunca disse "Eu te amo". Toda noite, ela ia à cabeceira da cama, fazia o sinal da cruz e murmurava "Deus te abençoe e te proteja de todos os males temporais e eternos, amém". Normalmente, minha mãe já estava dormindo. Eu, insone desde sempre, ouvia em silêncio, de olhos fechados, fingindo que dormia também.
Meu pai, uma das minhas maiores saudades. Até hoje sinto o gosto da tampinha da laranja.
As pessoas se vão, e os gestos ficam. Elas se eternizam neles.
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